De onde vem o maravilhamento que sentimos diante de certas obras? A admiração nasce com o primeiro olhar, e, se descobrimos depois, na paciente obstinação que demonstramos em encontrar suas causas, que toda essa beleza é fruto de um virtuosismo que só se detecta escrutando o trabalho de um pincel que soube domar a sombra e a luz e restituir, magnificando-as, suas formas e texturas - jóia transparente do vidro, grão tumultuado das conchas, aveludado claro do limão -, isso não dissipa nem explica o mistério do primeiro deslumbramento.
É um enigma sempre renovado: as grandes obras são formas visuais que atingem em nós a certeza de uma adequação imtemporal. É profundamente pertubador o modo como certas formas, sob o aspecto particular que lhes dão seus criadores, atravessam a história da Arte e, em filigrama do gênio individual, constituem outras tantas facetas do gênio universal. Que congruência entre em Claesz, um Rafael, um Rubens e um Hopper? Apesar da diversidade dos temas, dos suportes e das técnicas, apesar da insignificância e do efêmero de existências sempre fadadas a ser apenas de um só tempo e de uma só cultura, apesar também da unicidade de todo olhar, que nunca vê senão o que sua constituição lhe permite e que sofre com a pobreza de sua individualidade, o gênio dos grandes pintores penetrou até o coração do mistério e exumou, sob diversas aparências, a mesma forma sublime que procuramos em toda produção artística. Que congruência entre um Claesz, um Rafael, um Rubens e um Hopper? O olhar aí encontra, sem ter de procurar, uma forma que desencadeia a sensação da adequação, porque ela aparece para cada um como a própria essência do Belo, sem variações nem reserva, sem contexto nem esforço. Ora, na natureza-morta do limão, irredutível à maestria da execução, fazendo jorrar a sensação da adequação, a sensação de que é assim que isso devia estar disposto, permitindo sentir a força dos objetos e suas interações, manter através do olhar a solidariedade deles e os campos magnéticos que os atraem ou os rejeitam, o laço inefável que os tece e gera uma força, essa onda secreta e inexplicada que nasce dos estados de tensão e de equilíbrio da configuração - fazendo jorrar, portanto, a sensação de adequação, a disposição dos objetos e dos pratos atingia esse universal na singularidade: o intemporal da forma adequada.
domingo, 17 de maio de 2009
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Quem semeia desejo
"Marx muda totalmente minha visão do mundo", declarou-me hoje de manhã o jovem Palliéres, que, em geral, nunca me dirige a palavra.
Antonie Palliéres, rico herdeiro de uma velha dinastia industrial, é filho de um de meus oito patrões. Derradeira eructação da grande burguesia empresarial - que só se reproduz por meio de soluços limpos e sem vícios -, ele estava radiante com sua descoberta, que me contava por reflexo, sem sequer pensar que eu conseguiria entender alguma coisa. Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.
E foi aí que quase me traí, bestamente.
"Tem que ler a Ideologia alemã", disse a esse cretino de parca verde-garrafa.
Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem ás suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.
"Quem semeia desejo colhe opressão", estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.
Mas Antonie Palliéres, cujo bigode embrionário e repugnante não tem nada de felino, olha para mim, duvidando de minhas estranhas palavras. Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais. Uma zeladora não lê a Ideologia alemã, e, por conseguinte, seria incapaz de citar a décima primeira tese sobre Feuerbach. Além disso, uma zeladora que lê Marx está, necessariamente, de olho na subversão, e se vendeu a um diabo que se chama Confederação Geral dos Trabalhadores, a CGT. Que consiga lê-lo para a elevação do espírito é uma incongruência que burguês nenhum admite.
"Recomendações à senhora sua mãe", resmungo fechando a porta na cara dele e esperando que a disfonia das duas frases seja abafada pela força dos preconceitos milenares.
Antonie Palliéres, rico herdeiro de uma velha dinastia industrial, é filho de um de meus oito patrões. Derradeira eructação da grande burguesia empresarial - que só se reproduz por meio de soluços limpos e sem vícios -, ele estava radiante com sua descoberta, que me contava por reflexo, sem sequer pensar que eu conseguiria entender alguma coisa. Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.
E foi aí que quase me traí, bestamente.
"Tem que ler a Ideologia alemã", disse a esse cretino de parca verde-garrafa.
Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem ás suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.
"Quem semeia desejo colhe opressão", estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.
Mas Antonie Palliéres, cujo bigode embrionário e repugnante não tem nada de felino, olha para mim, duvidando de minhas estranhas palavras. Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais. Uma zeladora não lê a Ideologia alemã, e, por conseguinte, seria incapaz de citar a décima primeira tese sobre Feuerbach. Além disso, uma zeladora que lê Marx está, necessariamente, de olho na subversão, e se vendeu a um diabo que se chama Confederação Geral dos Trabalhadores, a CGT. Que consiga lê-lo para a elevação do espírito é uma incongruência que burguês nenhum admite.
"Recomendações à senhora sua mãe", resmungo fechando a porta na cara dele e esperando que a disfonia das duas frases seja abafada pela força dos preconceitos milenares.
sábado, 2 de maio de 2009
História do Pranto
É muito tarde. A casa está amordaçada pela escuridão. Levanta-se da cama, apanha o exemplar de La causa peronista e sai de seu quarto. Atravessa o longo corredor escuro que, quando menino, a tal ponto o apavora, que não parece separar, mas sim excluir seu quarto do mundo. Embora já não tenha medo, o método que usa - caminhar tocando as duas paredes do corredor com as palmas das mãos - é o mesmo que descobre e põe em prática aos seis, sete anos, quando a distância que adivinha que há entre seu quarto e o resto da casa é a mesma que há nos filmes de ficção científica entre a cápsula que permance boiando no espaço e a nave que acaba de expulsá-la. Faz um ele, chega ao quarto de sua mãe, encontra a porta aberta. Não está aberta há muito tempo, como o provam a condição fresca do ar, que, recém-removido, ainda vibra, e a placa de "Não pertube", que ainda oscila pendurada no trinco, lembrança de um hotel e de uma viagem e de uma felicidade que já entraram para a história do que não se repetirá. Bate do mesmo jeito, de leve, menos para alertar sua mãe do que para justificar a ousadia que empreende, e entra. Reconhece com os pés o tecido suave de uma meia, lenços de papel, um livro aberto de borco, óculos que rangem, frascos com pílulas. Busca às cegas o interruptor, e quando está prestes a acendê-lo, ouve a voz de sua mãe, uma voz sufocada que parece vir de muito longe. "Não quero luz", diz. Percebe que ela está sozinha na cama e senta-se na beira e espera com a revista na mão enquanto a ouve chorar na escuridão.
terça-feira, 14 de abril de 2009
Uma mulher na rua
Eu estava sentada no táxi, pensando se a minha roupa estava chique demais para aquela noite, quando olhei pela janela e vi mamãe remexendo o fundo de um latão de lixo. Tinha acabado de escurecer. Ovento tempestuoso de março cortava as fumarolas de vapor que escapavam dos bueiros das calçadas, e as pessoas andavam, apressadas, com as golas levantadas. Eu estava presa num engarrafamento a dois quarteirões da festa para onde me dirigia.
Mamãe estava a uns cinco metros de distância. Tinha trapos enrolados em torno dos ombros contra a friagem do início da primavera e procurava coisas no lixo, enquanto seu cachorro, um terrier mix preto-e-branco, brincava a seus pés. Eu reconhecia todos os gestos de mamãe - a maneira de inclinar a cabeça e projetar o lábio inferior para frente ao avaliar itens de valor potencial que ela suspendia da lixeira, a maneira alegre e infantil de arregalar os olhos ao encontrar algo que lhe agradava. Seus cabelos longos estavam repletos de mechas grisalhas, embaraçados e desgrenhados, e os olhos haviam afundado nas órbitas, mas ela ainda me lembrava a mãe que tive quando pequena, mergulhando de cabeça do topo de penhascos, pintando no deserto e lendo Shakespeare em voz alta. As maçãs do rosto ainda eram proeminentes e fortes, mas a pele estava seca e avermelhada, de todos aqueles invernos e verões expostos às intempéries. Quem passava por ela pensava que provavelmente se tratava de qualquer um dos milhares de sem-teto da cidade de Nova York.
Havia meses eu não via mamãe. Quando ela olhou para cima, fui invadida por uma sensação de pânico. Tive medo de que ela me visse e me chamasse, de que alguém a caminho da mesma festa nos visse juntas e mamãe se apresentasse, e o meu segredo, assim, fosse revelado.
Encolhi-me no assento e pedi ao motorista que desse meia-volta e me levasse para casa, na Park Avenue.
O táxi estacionou na frente do prédio, o porteiro abriu a porta para mim, o ascensorista levou-me ao meu andar. Meu marido ainda estava no trabalho, fazendo hora extra, como fazia a maioria das noites, e o apartamento estava silencioso, a não ser pelo estalar do salto de meus sapatos no chão encerado. Ainda estava estremecida por ter visto mamãe, e com o inesperado da situação, com a visão de a ver remexendo feliz e satisfeita a lata de lixo. Coloquei um disco de Vivaldi, na esperança de que a música me acalmasse.
Dei uma olhada ao redor da sala. Lá estavam os vasos de bronze e prata do fim do século passado e os velhos livros com encadernação de couro gasta, que eu vinha colecionando das feiras de antiguidades. Lá estavam os mapas georgianos que eu havia emoldurado, os tapetes persas, e a poltrona de couro estofada, na qual eu gostava de me refestelar no final do dia. Vinha tentando transformar o lugar na minha morada, imprimir meus gostos, fazer do apartamento um tipo de lugar em que se deseja viver. Mas eu nunca poderia me sentir bem naquela sala com mamãe e papai amontoados sobre a grade de ventilação de um bueiro, em um canto qualquer. Era muita preocupação. Ao mesmo tempo em que ficava aflita por eles, constrangia-me, e tinha vergonha de mim mesma por usar pérolas e morar na Park Avenue, enquanto os meus pais lutavam para se manter aquecidos e encontrar o que comer.
O que eu podia fazer? Tentara ajudá-los inúmeras vezes, mas papai insistia em que eles não precisavam de nada, e mamãe pedia coisas imbecis, como um spray de perfume ou o pagamento das mensalidades em uma academia de ginástica. Eles diziam que estavam vivendo exatamente como queriam.
Depois de me encolher no assento do táxi para que mamãe não me visse, senti ódio de mim mesma - ódio de minhas antiguidades, de minhas roupas, de meu apartamento. Eu precisava fazer alguma coisa, então liguei para uma amiga de mamãe e deixei um recado.
Assim nos comunicávamos, era nosso código. Mamãe sempre levava alguns dias para retornar a ligação, mas quando eu a ouvia, ela soava, como sempre, alegre e despreocupada, como se tivéssemos almoçado juntas um dia antes. Disse-lhe que queria encontrá-la, e sugeri que ela passasse aqui em casa, mas ela preferia ir a um restaurante. Ela adorava comer fora, e combinamos de nos encontrar para almoçar no seu restaurante predileto de comida chinesa.
Mamãe estava sentada em um carro, consultando o menu, quando eu cheguei. Esforçara-se para arrumar melhor. Estava usando um suéter cinza largo, com umas poucas manchas pequenas, e sapatos masculinos de couro preto. Tinha lavado o rosto, mas o pescoço e as têmporas ainda estavam escuras de sujeira.
Acenou animadamente quando me viu.
- É a minha filhinha! - exclamou, com a voz elevada.
Dei-lhe um beijo no rosto. Mamãe havia enfiado na bolsa todos os sachês de molho de soja e mostarda picante que estavam sobre a mesa. Agora, esvaziava um pratinho de madeira com salgadinhos, também dentro da bolsa.
- Um lanchinho para mais tarde - explicou.
Fizemos nosso pedido. Mamãe escolheu a Delícia Marinha.
- Você sabe que eu adoro esses frutos do mar - disse.
Começou a falar de Picasso. Assistira a uma retrospectiva de sua obra e resolveu que ele que não era tão bom assim. Na sua opinião, toda aquela história de cubismo era enrolação. Ele não havia feito nada realmente valioso depois da sua Fase Rosa.
- Estou preocupada com você - falei. - Me diga no que posso ajudar.
O sorriso dela se desfez.
- Por que acha que eu preciso da sua ajuda?
- Eu não sou rica - respondi -, mas tenho algum dinheiro.
Me diga do que você está precisando.
Parou para pensar um instante.
- Eu precisava de umas sessões de eletrólise.
- Fala sério.
- Estou falando sério. Se uma mulher tem uma boa aparência, ela se sente bem.
- Ora, mamãe. - Senti a tensão nos meus ombros, comum e habitual durante essas conversas. - Estou falando de algo que pudesse te ajudar a mudar a sua vida, a avançar.
- Você quer me ajudar a mudar a minha vida? - perguntou. - Eu vou muito bem. Você é quem está precisando de ajuda. Seus valores estão todos invertidos.
- Mamãe, eu te vi revirando lixo no East Village uns dias atrás.
- As pessoas deste país desperdiçam muito. Essa é a minha maneira de reciclar. - Ela deu uma garfada na sua Delícia Marinha. - Por que não parou para me cumprimentar?
- Eu estava envergonhada demais, mamãe. Me escondi.
Mamãe apontou os palitinhos chineses para mim.
- Tá vendo? Pois então. É disso que estou falando. Você fica envergonhada à toa. O seu pai e eu somos o que somos. Você tem que aceitar.
- E o que devo dizer aos outros sobre os meus pais?
- Diga a verdade - respondeu.- A mais simples verdade...
Primeiro capítulo do livro: O castelo de vidro de Jeanette Walls.
Mamãe estava a uns cinco metros de distância. Tinha trapos enrolados em torno dos ombros contra a friagem do início da primavera e procurava coisas no lixo, enquanto seu cachorro, um terrier mix preto-e-branco, brincava a seus pés. Eu reconhecia todos os gestos de mamãe - a maneira de inclinar a cabeça e projetar o lábio inferior para frente ao avaliar itens de valor potencial que ela suspendia da lixeira, a maneira alegre e infantil de arregalar os olhos ao encontrar algo que lhe agradava. Seus cabelos longos estavam repletos de mechas grisalhas, embaraçados e desgrenhados, e os olhos haviam afundado nas órbitas, mas ela ainda me lembrava a mãe que tive quando pequena, mergulhando de cabeça do topo de penhascos, pintando no deserto e lendo Shakespeare em voz alta. As maçãs do rosto ainda eram proeminentes e fortes, mas a pele estava seca e avermelhada, de todos aqueles invernos e verões expostos às intempéries. Quem passava por ela pensava que provavelmente se tratava de qualquer um dos milhares de sem-teto da cidade de Nova York.
Havia meses eu não via mamãe. Quando ela olhou para cima, fui invadida por uma sensação de pânico. Tive medo de que ela me visse e me chamasse, de que alguém a caminho da mesma festa nos visse juntas e mamãe se apresentasse, e o meu segredo, assim, fosse revelado.
Encolhi-me no assento e pedi ao motorista que desse meia-volta e me levasse para casa, na Park Avenue.
O táxi estacionou na frente do prédio, o porteiro abriu a porta para mim, o ascensorista levou-me ao meu andar. Meu marido ainda estava no trabalho, fazendo hora extra, como fazia a maioria das noites, e o apartamento estava silencioso, a não ser pelo estalar do salto de meus sapatos no chão encerado. Ainda estava estremecida por ter visto mamãe, e com o inesperado da situação, com a visão de a ver remexendo feliz e satisfeita a lata de lixo. Coloquei um disco de Vivaldi, na esperança de que a música me acalmasse.
Dei uma olhada ao redor da sala. Lá estavam os vasos de bronze e prata do fim do século passado e os velhos livros com encadernação de couro gasta, que eu vinha colecionando das feiras de antiguidades. Lá estavam os mapas georgianos que eu havia emoldurado, os tapetes persas, e a poltrona de couro estofada, na qual eu gostava de me refestelar no final do dia. Vinha tentando transformar o lugar na minha morada, imprimir meus gostos, fazer do apartamento um tipo de lugar em que se deseja viver. Mas eu nunca poderia me sentir bem naquela sala com mamãe e papai amontoados sobre a grade de ventilação de um bueiro, em um canto qualquer. Era muita preocupação. Ao mesmo tempo em que ficava aflita por eles, constrangia-me, e tinha vergonha de mim mesma por usar pérolas e morar na Park Avenue, enquanto os meus pais lutavam para se manter aquecidos e encontrar o que comer.
O que eu podia fazer? Tentara ajudá-los inúmeras vezes, mas papai insistia em que eles não precisavam de nada, e mamãe pedia coisas imbecis, como um spray de perfume ou o pagamento das mensalidades em uma academia de ginástica. Eles diziam que estavam vivendo exatamente como queriam.
Depois de me encolher no assento do táxi para que mamãe não me visse, senti ódio de mim mesma - ódio de minhas antiguidades, de minhas roupas, de meu apartamento. Eu precisava fazer alguma coisa, então liguei para uma amiga de mamãe e deixei um recado.
Assim nos comunicávamos, era nosso código. Mamãe sempre levava alguns dias para retornar a ligação, mas quando eu a ouvia, ela soava, como sempre, alegre e despreocupada, como se tivéssemos almoçado juntas um dia antes. Disse-lhe que queria encontrá-la, e sugeri que ela passasse aqui em casa, mas ela preferia ir a um restaurante. Ela adorava comer fora, e combinamos de nos encontrar para almoçar no seu restaurante predileto de comida chinesa.
Mamãe estava sentada em um carro, consultando o menu, quando eu cheguei. Esforçara-se para arrumar melhor. Estava usando um suéter cinza largo, com umas poucas manchas pequenas, e sapatos masculinos de couro preto. Tinha lavado o rosto, mas o pescoço e as têmporas ainda estavam escuras de sujeira.
Acenou animadamente quando me viu.
- É a minha filhinha! - exclamou, com a voz elevada.
Dei-lhe um beijo no rosto. Mamãe havia enfiado na bolsa todos os sachês de molho de soja e mostarda picante que estavam sobre a mesa. Agora, esvaziava um pratinho de madeira com salgadinhos, também dentro da bolsa.
- Um lanchinho para mais tarde - explicou.
Fizemos nosso pedido. Mamãe escolheu a Delícia Marinha.
- Você sabe que eu adoro esses frutos do mar - disse.
Começou a falar de Picasso. Assistira a uma retrospectiva de sua obra e resolveu que ele que não era tão bom assim. Na sua opinião, toda aquela história de cubismo era enrolação. Ele não havia feito nada realmente valioso depois da sua Fase Rosa.
- Estou preocupada com você - falei. - Me diga no que posso ajudar.
O sorriso dela se desfez.
- Por que acha que eu preciso da sua ajuda?
- Eu não sou rica - respondi -, mas tenho algum dinheiro.
Me diga do que você está precisando.
Parou para pensar um instante.
- Eu precisava de umas sessões de eletrólise.
- Fala sério.
- Estou falando sério. Se uma mulher tem uma boa aparência, ela se sente bem.
- Ora, mamãe. - Senti a tensão nos meus ombros, comum e habitual durante essas conversas. - Estou falando de algo que pudesse te ajudar a mudar a sua vida, a avançar.
- Você quer me ajudar a mudar a minha vida? - perguntou. - Eu vou muito bem. Você é quem está precisando de ajuda. Seus valores estão todos invertidos.
- Mamãe, eu te vi revirando lixo no East Village uns dias atrás.
- As pessoas deste país desperdiçam muito. Essa é a minha maneira de reciclar. - Ela deu uma garfada na sua Delícia Marinha. - Por que não parou para me cumprimentar?
- Eu estava envergonhada demais, mamãe. Me escondi.
Mamãe apontou os palitinhos chineses para mim.
- Tá vendo? Pois então. É disso que estou falando. Você fica envergonhada à toa. O seu pai e eu somos o que somos. Você tem que aceitar.
- E o que devo dizer aos outros sobre os meus pais?
- Diga a verdade - respondeu.- A mais simples verdade...
Primeiro capítulo do livro: O castelo de vidro de Jeanette Walls.
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