quinta-feira, 10 de março de 2011

A fuga da jaula

Tomei a decisão de fugir. Era minha quarta tentativa, mas depois da última vez as condições de detenção tinham se tornado ainda mais terríveis. Eles haviam nos instalado numa jaula construída com tábuas de madeira e folhas de zinco à guisa do telhado. O verão estava chegando, fazia mais de um mês que não tínhamos tempestades à noite. Ora, uma tempestade era indispensável para nós. Eu localizara uma tábua meio podre num canto de nosso cubículo. Empurrando-a fortemente com o pé, conseguiu rachá-la o suficiente para criar uma abertura. Fiz isso numa tarde, depois do almoço, enquanto o guarda cochilava em pé, equilibrado sobre seu fuzil. O barulho o assustou. Ele se aproximou, nervoso, e deu a volta na jaula devagar, como um animal selvagem. Eu o acompanhava pelas fendas que separavam as tábuas, prendendo a respiração. Ele não conseguia me ver. Parou duas vezes, chegando a grudar o olho num buraco, e por um instante nossos olhares se cruzaram. Deu um pulo para trás, assustado. Depois, para disfarçar, plantou-se bem na entrada da jaula; estava indo à forra, pois não tirava mais os olhos de mim.


Trecho do Livro Não há silêncio que não termine. Meus anos de cativeiro na selva colombiana. Ingrid Betancourt.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Prólogo

Casa do Templo
20h33

O segredo é saber como morrer.
Desde o início dos tempos, o segredo sempre foi saber como morrer. O iniciado de 34 anos baixou os olhos para o crânio humano que segurava com as duas mãos. O crânio era oco feito uma tigela e estava cheio de vinho cor de sangue.
Beba, disse ele a si mesmo. Você não tem nada a temer.
Como rezava a tradição, ele havia começado aquela jornada vestido com os trajes ritualísticos de um herege medieval a caminho da forca, com a camisa frouxa deixando entrever o peito pálido, a perna esquerdaa da calça arregaçada até o joelho e a manga direita enrolada até o cotovelo. De seu pescoço pendia um pesado nó feito de corda - uma "atadura", como diziam os irmãos. Nessa noite, porém, assim como os companheiros que assistiam à cerimônia, ele estava vestido de Mestre.

Trecho do livro: O Símbolo Perdido de Dan Brown.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Zarité

Eu, Zarité Sedella, do alto dos meus quarenta anos, posso dizer que tive mais sorte do que as outras escravas. Vou viver muito e a minha velhice será feliz porque a minha estrela - minha z'etoile - brilha também quando a noite está nublada. Conheço o prazer de estar com o homem escolhido pelo meu coração quando as suas mãos grandes despertam a minha pele. Tive quatro filhos e 1 neto, e os que estão vivos são livres......

Trecho do livro: A Ilha Sob o Mar de Isabel Allende.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Cem anos de solidão

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como óvos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, * que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. "As coisas têm vida própria", apregoava o cigano com áspero sotaque, "tudo é questão de despertar a sua alma".

Trecho do livro Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez.

domingo, 17 de maio de 2009

Que congruência?

De onde vem o maravilhamento que sentimos diante de certas obras? A admiração nasce com o primeiro olhar, e, se descobrimos depois, na paciente obstinação que demonstramos em encontrar suas causas, que toda essa beleza é fruto de um virtuosismo que só se detecta escrutando o trabalho de um pincel que soube domar a sombra e a luz e restituir, magnificando-as, suas formas e texturas - jóia transparente do vidro, grão tumultuado das conchas, aveludado claro do limão -, isso não dissipa nem explica o mistério do primeiro deslumbramento.
É um enigma sempre renovado: as grandes obras são formas visuais que atingem em nós a certeza de uma adequação imtemporal. É profundamente pertubador o modo como certas formas, sob o aspecto particular que lhes dão seus criadores, atravessam a história da Arte e, em filigrama do gênio individual, constituem outras tantas facetas do gênio universal. Que congruência entre em Claesz, um Rafael, um Rubens e um Hopper? Apesar da diversidade dos temas, dos suportes e das técnicas, apesar da insignificância e do efêmero de existências sempre fadadas a ser apenas de um só tempo e de uma só cultura, apesar também da unicidade de todo olhar, que nunca vê senão o que sua constituição lhe permite e que sofre com a pobreza de sua individualidade, o gênio dos grandes pintores penetrou até o coração do mistério e exumou, sob diversas aparências, a mesma forma sublime que procuramos em toda produção artística. Que congruência entre um Claesz, um Rafael, um Rubens e um Hopper? O olhar aí encontra, sem ter de procurar, uma forma que desencadeia a sensação da adequação, porque ela aparece para cada um como a própria essência do Belo, sem variações nem reserva, sem contexto nem esforço. Ora, na natureza-morta do limão, irredutível à maestria da execução, fazendo jorrar a sensação da adequação, a sensação de que é assim que isso devia estar disposto, permitindo sentir a força dos objetos e suas interações, manter através do olhar a solidariedade deles e os campos magnéticos que os atraem ou os rejeitam, o laço inefável que os tece e gera uma força, essa onda secreta e inexplicada que nasce dos estados de tensão e de equilíbrio da configuração - fazendo jorrar, portanto, a sensação de adequação, a disposição dos objetos e dos pratos atingia esse universal na singularidade: o intemporal da forma adequada.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Quem semeia desejo

"Marx muda totalmente minha visão do mundo", declarou-me hoje de manhã o jovem Palliéres, que, em geral, nunca me dirige a palavra.
Antonie Palliéres, rico herdeiro de uma velha dinastia industrial, é filho de um de meus oito patrões. Derradeira eructação da grande burguesia empresarial - que só se reproduz por meio de soluços limpos e sem vícios -, ele estava radiante com sua descoberta, que me contava por reflexo, sem sequer pensar que eu conseguiria entender alguma coisa. Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.
E foi aí que quase me traí, bestamente.
"Tem que ler a Ideologia alemã", disse a esse cretino de parca verde-garrafa.
Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem ás suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.
"Quem semeia desejo colhe opressão", estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.
Mas Antonie Palliéres, cujo bigode embrionário e repugnante não tem nada de felino, olha para mim, duvidando de minhas estranhas palavras. Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais. Uma zeladora não lê a Ideologia alemã, e, por conseguinte, seria incapaz de citar a décima primeira tese sobre Feuerbach. Além disso, uma zeladora que lê Marx está, necessariamente, de olho na subversão, e se vendeu a um diabo que se chama Confederação Geral dos Trabalhadores, a CGT. Que consiga lê-lo para a elevação do espírito é uma incongruência que burguês nenhum admite.
"Recomendações à senhora sua mãe", resmungo fechando a porta na cara dele e esperando que a disfonia das duas frases seja abafada pela força dos preconceitos milenares.

sábado, 2 de maio de 2009

História do Pranto

É muito tarde. A casa está amordaçada pela escuridão. Levanta-se da cama, apanha o exemplar de La causa peronista e sai de seu quarto. Atravessa o longo corredor escuro que, quando menino, a tal ponto o apavora, que não parece separar, mas sim excluir seu quarto do mundo. Embora já não tenha medo, o método que usa - caminhar tocando as duas paredes do corredor com as palmas das mãos - é o mesmo que descobre e põe em prática aos seis, sete anos, quando a distância que adivinha que há entre seu quarto e o resto da casa é a mesma que há nos filmes de ficção científica entre a cápsula que permance boiando no espaço e a nave que acaba de expulsá-la. Faz um ele, chega ao quarto de sua mãe, encontra a porta aberta. Não está aberta há muito tempo, como o provam a condição fresca do ar, que, recém-removido, ainda vibra, e a placa de "Não pertube", que ainda oscila pendurada no trinco, lembrança de um hotel e de uma viagem e de uma felicidade que já entraram para a história do que não se repetirá. Bate do mesmo jeito, de leve, menos para alertar sua mãe do que para justificar a ousadia que empreende, e entra. Reconhece com os pés o tecido suave de uma meia, lenços de papel, um livro aberto de borco, óculos que rangem, frascos com pílulas. Busca às cegas o interruptor, e quando está prestes a acendê-lo, ouve a voz de sua mãe, uma voz sufocada que parece vir de muito longe. "Não quero luz", diz. Percebe que ela está sozinha na cama e senta-se na beira e espera com a revista na mão enquanto a ouve chorar na escuridão.