terça-feira, 14 de abril de 2009

Uma mulher na rua

Eu estava sentada no táxi, pensando se a minha roupa estava chique demais para aquela noite, quando olhei pela janela e vi mamãe remexendo o fundo de um latão de lixo. Tinha acabado de escurecer. Ovento tempestuoso de março cortava as fumarolas de vapor que escapavam dos bueiros das calçadas, e as pessoas andavam, apressadas, com as golas levantadas. Eu estava presa num engarrafamento a dois quarteirões da festa para onde me dirigia.
Mamãe estava a uns cinco metros de distância. Tinha trapos enrolados em torno dos ombros contra a friagem do início da primavera e procurava coisas no lixo, enquanto seu cachorro, um terrier mix preto-e-branco, brincava a seus pés. Eu reconhecia todos os gestos de mamãe - a maneira de inclinar a cabeça e projetar o lábio inferior para frente ao avaliar itens de valor potencial que ela suspendia da lixeira, a maneira alegre e infantil de arregalar os olhos ao encontrar algo que lhe agradava. Seus cabelos longos estavam repletos de mechas grisalhas, embaraçados e desgrenhados, e os olhos haviam afundado nas órbitas, mas ela ainda me lembrava a mãe que tive quando pequena, mergulhando de cabeça do topo de penhascos, pintando no deserto e lendo Shakespeare em voz alta. As maçãs do rosto ainda eram proeminentes e fortes, mas a pele estava seca e avermelhada, de todos aqueles invernos e verões expostos às intempéries. Quem passava por ela pensava que provavelmente se tratava de qualquer um dos milhares de sem-teto da cidade de Nova York.
Havia meses eu não via mamãe. Quando ela olhou para cima, fui invadida por uma sensação de pânico. Tive medo de que ela me visse e me chamasse, de que alguém a caminho da mesma festa nos visse juntas e mamãe se apresentasse, e o meu segredo, assim, fosse revelado.
Encolhi-me no assento e pedi ao motorista que desse meia-volta e me levasse para casa, na Park Avenue.
O táxi estacionou na frente do prédio, o porteiro abriu a porta para mim, o ascensorista levou-me ao meu andar. Meu marido ainda estava no trabalho, fazendo hora extra, como fazia a maioria das noites, e o apartamento estava silencioso, a não ser pelo estalar do salto de meus sapatos no chão encerado. Ainda estava estremecida por ter visto mamãe, e com o inesperado da situação, com a visão de a ver remexendo feliz e satisfeita a lata de lixo. Coloquei um disco de Vivaldi, na esperança de que a música me acalmasse.
Dei uma olhada ao redor da sala. Lá estavam os vasos de bronze e prata do fim do século passado e os velhos livros com encadernação de couro gasta, que eu vinha colecionando das feiras de antiguidades. Lá estavam os mapas georgianos que eu havia emoldurado, os tapetes persas, e a poltrona de couro estofada, na qual eu gostava de me refestelar no final do dia. Vinha tentando transformar o lugar na minha morada, imprimir meus gostos, fazer do apartamento um tipo de lugar em que se deseja viver. Mas eu nunca poderia me sentir bem naquela sala com mamãe e papai amontoados sobre a grade de ventilação de um bueiro, em um canto qualquer. Era muita preocupação. Ao mesmo tempo em que ficava aflita por eles, constrangia-me, e tinha vergonha de mim mesma por usar pérolas e morar na Park Avenue, enquanto os meus pais lutavam para se manter aquecidos e encontrar o que comer.
O que eu podia fazer? Tentara ajudá-los inúmeras vezes, mas papai insistia em que eles não precisavam de nada, e mamãe pedia coisas imbecis, como um spray de perfume ou o pagamento das mensalidades em uma academia de ginástica. Eles diziam que estavam vivendo exatamente como queriam.
Depois de me encolher no assento do táxi para que mamãe não me visse, senti ódio de mim mesma - ódio de minhas antiguidades, de minhas roupas, de meu apartamento. Eu precisava fazer alguma coisa, então liguei para uma amiga de mamãe e deixei um recado.
Assim nos comunicávamos, era nosso código. Mamãe sempre levava alguns dias para retornar a ligação, mas quando eu a ouvia, ela soava, como sempre, alegre e despreocupada, como se tivéssemos almoçado juntas um dia antes. Disse-lhe que queria encontrá-la, e sugeri que ela passasse aqui em casa, mas ela preferia ir a um restaurante. Ela adorava comer fora, e combinamos de nos encontrar para almoçar no seu restaurante predileto de comida chinesa.
Mamãe estava sentada em um carro, consultando o menu, quando eu cheguei. Esforçara-se para arrumar melhor. Estava usando um suéter cinza largo, com umas poucas manchas pequenas, e sapatos masculinos de couro preto. Tinha lavado o rosto, mas o pescoço e as têmporas ainda estavam escuras de sujeira.
Acenou animadamente quando me viu.
- É a minha filhinha! - exclamou, com a voz elevada.
Dei-lhe um beijo no rosto. Mamãe havia enfiado na bolsa todos os sachês de molho de soja e mostarda picante que estavam sobre a mesa. Agora, esvaziava um pratinho de madeira com salgadinhos, também dentro da bolsa.
- Um lanchinho para mais tarde - explicou.
Fizemos nosso pedido. Mamãe escolheu a Delícia Marinha.
- Você sabe que eu adoro esses frutos do mar - disse.
Começou a falar de Picasso. Assistira a uma retrospectiva de sua obra e resolveu que ele que não era tão bom assim. Na sua opinião, toda aquela história de cubismo era enrolação. Ele não havia feito nada realmente valioso depois da sua Fase Rosa.
- Estou preocupada com você - falei. - Me diga no que posso ajudar.
O sorriso dela se desfez.
- Por que acha que eu preciso da sua ajuda?
- Eu não sou rica - respondi -, mas tenho algum dinheiro.
Me diga do que você está precisando.
Parou para pensar um instante.
- Eu precisava de umas sessões de eletrólise.
- Fala sério.
- Estou falando sério. Se uma mulher tem uma boa aparência, ela se sente bem.
- Ora, mamãe. - Senti a tensão nos meus ombros, comum e habitual durante essas conversas. - Estou falando de algo que pudesse te ajudar a mudar a sua vida, a avançar.
- Você quer me ajudar a mudar a minha vida? - perguntou. - Eu vou muito bem. Você é quem está precisando de ajuda. Seus valores estão todos invertidos.
- Mamãe, eu te vi revirando lixo no East Village uns dias atrás.
- As pessoas deste país desperdiçam muito. Essa é a minha maneira de reciclar. - Ela deu uma garfada na sua Delícia Marinha. - Por que não parou para me cumprimentar?
- Eu estava envergonhada demais, mamãe. Me escondi.
Mamãe apontou os palitinhos chineses para mim.
- Tá vendo? Pois então. É disso que estou falando. Você fica envergonhada à toa. O seu pai e eu somos o que somos. Você tem que aceitar.
- E o que devo dizer aos outros sobre os meus pais?
- Diga a verdade - respondeu.- A mais simples verdade...


Primeiro capítulo do livro: O castelo de vidro de Jeanette Walls.